quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Terceiro Encontro: O Êxodo, a fé liberta

1. A FÉ ALIENA E OPRIME? OU LIBERTA?
Comecemos por recapitular as promessas feitas a Abraão: Que promessas fez Deus a Abraão? Que frutos recebeu da fé? A nossa fé é como o caminho de Abraão. Onde nos leva? Habitualmente afirmamos que o fruto da fé é a vida eterna.
Mas, para as pessoas de hoje, geralmente mais preocupadas com esta vida do que com o «além», a vida eterna não é, por vezes, motivante, não desperta muito interesse.
Nesta vida terrena em que agora vivemos, qual o resultado da fé? Contribuiu para uma vida mais feliz e realizada ou a preocupação da vida eterna alterna as pessoas dos compromissos terrenos? A fé é um jugo que impede muitas coisas agradáveis ou é um caminho de realização? Que pensam as pessoas à nossa volta’ Que pensais vós?
Frequentemente, se tem acusado o cristianismo de alienar as pessoas. O marxismo identificou a fé cristã como «ópio do povo», uma espécie de droga que adormece e aliena i povo para o manter tranquilo na miséria, com a esperança da recompensa na vida eterna. Para a psicanálise de Freud, a fé é uma doença psíquica, que mantém a pessoa no infantilismo, lhe rouba a autonomia e a liberdade e se torna fonte de neurose, de desequilíbrios psíquicos. Para outros ainda, a fé é apenas uma muleta para as personalidades fracas, o maior obstáculo à alegria de viver e ao desejo de felicidade.
Estas acusações são um desafio a buscar a verdade e autenticidade da nossa fé. Por isso, vamos agora debruçar-nos sobre uma etapa decisiva da história da salvação: o Êxodo do povo de Deus da escravidão do Egipto para a terra da liberdade. Este grande acontecimento está no centro da fé e Israel, Meditando sobre ele, o povo descobriu o Deus dos pais presente na história da libertação dos homens. Desde então, a profissão de fé de Israel resume-se numa frase: Deus libertou o Seu povo. Uma figura chave para compreender esta epopeia da libertação é Moisés que conduziu p êxodo do povo para a Terra Prometida.

2. DEUS LIBERTOU O SEU POVO
2.1. A opressão do povo no Egipto

A promessa feita por Deus a Abraão é renovada aos seus descendentes: Isaac e Jacob. Este foi o que deu unidade às doze tribos, originadas dos seus filhos, e assim formou o povo de Israel. Entretanto, os filhos de Israel emigraram para o Egipto, em escasso número. Inicialmente, foram bem recebidos pelos egípcios. Mas, logo se tornaram numa grande multidão, devido à extraordinária fecundidade, e isso assustou o Faraó do Egipto. Foram então submetidos a trabalhos forçados, à mais dura escravidão. Como continuavam a proliferar, o Faraó lançou mão da medida mais feroz de controle de natalidade: ordena que todo o menino israelita que nascer seja atirado ao rio.

2.2. Moisés libertador
a) Infância de Moisés

É nesta situação que nasce um menino, cuja mãe para o salvar, o coloca numa cesta calafetada junto ao rio. Quando a filha do Faraó veio tomar banho ao rio, encontrou o menino a chorar, encheu –se de compaixão e adoptou-se e deu-lhe o nome de Moisés, que quer dizer «salvo das águas». Meditando este episódio, a fé de Israel descobriu o significado da infância de Moisés: ele foi objecto de uma especial providência de Deus que o salva e prepara para a sua missão. De facto, foi salvo das águas e introduzido na corte, onde foi educado em toda a sabedoria e cultura dos egípcios. Estava em boa posição e tornara-se uma pessoa importante.

b) Moisés põe-se em fuga
Um dia mais tarde, cheio de generosidade e solidariedade foi visitar os seus irmãos de sangue. Não podia suportar a injustiça de que eram vítimas. Vendo maltratar um deles, expõe-se até matar o agressor egípcio. Depois, quis fazer dos seus irmãos um povo com dignidade que se respeitassem e amassem. Mas nem sequer os irmãos entenderam a dignidade e liberdade que lhes propunha. Encontrou resistência por parte deles. Teve medo de que o Faraó viesse a saber tudo. Acabavam-se os bons e generosos sonhos. Fugiu do Egipto e foi viver como estrangeiro para a terra de Madian. Aí casou, constituiu família e guardava rebanhos.

c) O encontro com Deus
Foi então que fez a descoberta da iniciativa de Deus na sua vida. Quando estava no deserto, no monte Horeb – a montanha de Deus – a 1700 metros de altitude, apascentando o rebanho do sogro, Moisés vê, de longe, uma sarça que ardia sem se consumir. Aproximou-se para compreender o que significava. Que se passa? Que escuta Moisés? Que entende?
Antes de mais, escuta o seu nome: «Moisés»! Moisés!»
Dá-se conta de que Alguém sabe o seu nome, se interessa por ele. Escuta, depois, algo inesperado: «Não te aproximes daqui. Tia as sandálias, porque o lugar em que te encontras é sagrado. Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob» E Moisés escondeu o rosto porque temia ver a Deus.
Compreendeu que estava perante uma manifestação de Deus. É Deus que busca Moisés e se interessa por ele que é um foragido. E busca-o onde ele se encontra. Mas o encontro com Deus exige purificação, despojamento, disponibilidade (tirar as sandálias). Por isso, Moisés sentiu o temor do homem frágil e pecador diante do mistério de Deus.
Por outro lado, experimentou confiança. Deus apresentou-se-lhe como o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob – o Deus dos pais – aos quais já manifestara o Seu amor e fidelidade. E Moisés compreendeu que Deus se quer revelar de novo e fazer coisas novas com ele. O encontro com Deus é sempre um acontecimento de graça que chama a uma vida nova.

d) A missão
Deus ouvir o grito de clamor do Seu povo humilhado e decide liberta-lo dos opressores. Por isso, confia a Moisés esta missão: «O Senhor disse: Eu vi a miséria do Meu povo que está no Egipto e ouvi os seus clamores por causa dos seus opressores. Sim, eu conheço os seus sofrimentos. E desci para o livrar da mão dos egípcios e fazê-lo subir para uma terra fértil e esperançosa… vai, eu te envio ao faraó para tirar do Egipto os israelitas, meu Povo» (Ex 3, 7-10).
Moisés sente-se pequeno e humilde para uma empresa tão difícil. Conhecia o poderio esmagador do Faraó e do seu exército. Tem ainda viva a experiência do fracasso da primeira tentativa. E, por isso, escusou-se à tarefa: «Quem sou eu, Senhor, para ir ter com o Faraó e ir tirar do Egipto os israelitas?» (Ex 3,11). O Senhor, porém, apela à Egipto os israelitas?» (Ex 3,11) . O Senhor, porém, apela à confiança n’Ele: «Eu estarei contigo!» A presença de Deus é garantia de que levará a bom termo a sua missão.
Por último, Moisés perguntou ao Senhor com que nome O há-de identificar junto dos israelitas. E Deus responde: «Eu sou Aquele que sou», quer dizer: Eu sou Aquele que está aqui presente para vos salvar , o Deus presente, fiel e misericordioso.

2.3. A epopeia da libertação
Agora Moisés reconhece-se enviado, não para uma obra sua, mas para a obra de Deus. Depois de purificado e renovado no seu interior, põe-se completamente nas suas mãos. Vai ter com o Faraó e intimida-o: «Assim diz o Senhor, Deus de Israel: Deixa sair o Meu povo para que celebre uma festa no deserto». O Faraó opõe-se. Moisés, porém, crê na força da Palavra de Deus, mesmo sabendo que o Faraó continua obstinado.
Nesta circunstância, conjugam-se uma série de catástrofes que vêm dar força à sua palavra. São as pragas do Egipto: a cheia devastadora do Nilo, a invasão de rãs, parasitas, gafanhotos, mortandade de animais etc. O povo, à luz da fé, descobre aí sinais da força de Deus que combate a seu lado, vencendo as forças do mal e da opressão.
Finalmente o faraó cedeu e os israelitas puderam partir. Na véspera da partida, porém celebraram a Páscoa, durante a noite: cingidos nos rins e de bastão na mão, símbolos da prontidão e da pressa na saída do Egipto, comeram ervas amargas para evocar as amarguras da escravidão e o cordeiro pascal, imolado em honra do Senhor que os libertou. É a festa de acção de graças pelo dom da liberdade que vem de Deus.
Partiram de madrugada. Mas a travessia do deserto não foi de vento em popa. As forças de opressão renascem e voltam à perseguição. O exército do Faraó vai no seu encalce. Pela frente está o obstáculo: o Mar Vermelho. Às portas da liberdade, na última fronteira da escravidão, tudo parece falhar. O povo revolta-se contra Moisés. É uma noite de terror! Assediado, apela à valentia da fé na promessa: «Não temais! Tende ânimo e vereis a libertação que o Senhor vai operar hoje em vosso favor» (Ex 14, 13). O fracasso não é a última palavra. A última palavra é que Deus vence o mal e o homem vence com a força de Deus.
Levantou-se, então, uma tempestade de vento que facilitou a fuga porque a maré baixou. O povo reconheceu mais uma vez o dedo providencial de Deus. E, feita a travessia, ressurge um Israel novo que canta um hino de acção de graças (Te Deum) ao Senhor, o canto da liberdade e da justiça contra todas as formas de opressão.
«Eu quero cantar o Senhor
porque manifestou a Sua glória.
O senhor é a minha força e o meu canto
foi Ele quem me salvou
Ele é o meu Deus, eu o louvarei
O Deus de meu pai, eu O exaltarei.» (Ex 15, 1-2)


3. A FÉ, CAMINHO DE LIBERTAÇÃO
3.1. A grandeza de Moisés e daquele que crê
A história do êxodo e de Moisés não é só do passado. Aplica-se também aos cristãos, como diz S. Paulo, precisamente a este respeito: «Todos estes acontecimentos sucederam para servir de exemplo a nós.» (1Cor 10,6)
A descrição do Êxodo propõe-se suscitar a mesma fé de Moisés, acolher o mesmo dom da liberdade, fazer o mesmo esforço de libertação, para celebrar a presença do mesmo Deus libertador.
A grandeza de Moisés está na solidariedade com o povo e na intimidade com Deus. Ler Ex 32,31-32 e 33, 11 e verificar dois aspectos:
- Moisés é o chefe carismático que, sem medo, denuncia os desvios do povo da fidelidade à Aliança. No entanto, é profundamente solidário com a sorte do seu povo, anuncia-lhe a Palavra de Deus, guia-o e intercede por ele.
- A grandeza de Moisés não vem só das grandes coisas que realizou, mas fundamenta-se, sobretudo na sua fé e amizade profunda com Deus. Esta relação engrandece.

3.2. O compromisso do crente com a libertação
O Êxodo começado por Moisés conclui-se com Jesus Cristo, ressuscitado da morte para a vida verdadeira. Por isso, a vida com Cristo – a vida cristã – é também um êxodo, um sair das diferentes formas de escravidão para entrar na vida verdadeira, justa e livre com Deus. Esta libertação refere-se não só às escravidões mais profundas do coração humano egoísmo, ambição de possuir e dominar, violência), como também às de ordem social, económica e política. A fé cristã é um caminho de libertação.
Deus é aquele que quer a dignidade e q libertação. Não têm, por isso, consistência as acusações, atrás referidas, de que a fé aliena e oprime. Pelo contrário: a fé liberta os homens e promove os valores – solidariedade, força, coragem, fidelidade. A fé enriquece o homem na sua personalidade e no compromisso com a sociedade. Podemos lembrar algumas personalidades fortes de crentes como Teresa de Calcutá e João Paulo II que, de modo nenhum, se apresentam diminuídos.
A. Marto - M. Pelino

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Oração da Quaresma

Senhor,
ao iniciarmos novamente a Quaresma
mais uma vez nos recordais o essencial:
«Amar a Deus e aos irmãos, de todo o coração.»

Nós Vos pedimos, Senhor:
que não nos deixeis ir por caminhos fáceis;
que não nos instalemos
no bem-estar que o mundo nos oferece
e assim nos esqueçamos dos outros,
sobretudo os mais desfavorecidos.
Fazei que abandonemos os nossos preconceitos,
que não fechemos os olhos
a tantas realidades que não nos agradam
e nos magoam.

Fazei que as nossas preces
não sejam palavras ocas,
que a nossa esmola e o nosso jejum
sejam fruto do amor e da justiça.

Ajudai-nos, Senhor,
no nosso caminho de conversão,
para chegarmos a alcançar a profundidade
da vossa Paixão, Morte e Ressurreição.
Carmen G.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Segundo encontro: O Deus de Abraão e o Deus de Jesus Cristo

1. DEUS EM QUESTÃO
A Fé dirige-se a Deus, tem Deus por objecto. Ora, se nos tempos passados, a existência e a providência de Deus eram inquestionáveis, hoje não é assim. Deus é actualmente posto em questão.
De facto, a hipótese de Deus parece desnecessária para explicar o mundo. O conhecimento científico parece ter substituído a fé. O homem moderno dá a impressão de não precisar de Deus e viver à margem d`Ele. O consumo de bens materiais, o conforto e as possibilidades que lhe são oferecidas pela técnica serão suficientes para satisfazer o anseio de felicidade humana?
Por outro lado, as imagens e concepções de Deus e da religião que vemos à nossa volta também não são muito convincentes. Deus é, muitas vezes, entendido ou apresentado como um arquitecto que fez o mundo, ou então como um legislador que dá leis, ou juiz que castiga. Ou, ainda, como um mágico que resolve os problemas das pessoas e maneja as forças do universo através de milagres.
No vosso meio colocam-se também algumas questões a propósito da existência e da Providência de Deus? Que imagens deturpadas e pouco cedíveis notais acerca de Deus?
Será verdade p que afirma Paulo VI: «Deus tornou-se (para muita gente moderna) supérfluo e embaraçante»? Como se manifesta esta indiferença religiosa à vossa volta? Quais os motivos ou explicações desta indiferença?
Porém, o Deus em quem somos chamados a acreditar não é este Deus dos filósofos, ou dos mitos, ou da religiosidade natural. Nós acreditamos no Deus revelado na Sagrada Escritura. E, como dizia o sábio Pascal, convertido ao cristianismo, as imagens de Deus construídas pela razão humana não têm nada a ver com o Deus de Abraão e de Jesus. É este Deus que vamos procurar descobrir.

2. DEUS PRESENTE NA HISTÓRIA E NA CRIAÇÃO
2.1 Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob
A raiz mais antiga da nossa fé em Deus encontra-se nos patriarcas Abraão, Isaac e Jacob. O próprio Jesus cita estes pais na fé para afirmar que, tendo existido há milénios, eles continuam vivos na presença de Deus (cf. Mt 22,32). «Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob» e «Deus dos pais» são expressões que a Bíblia utiliza para apresentar Deus como Alguém conhecido e amigo dos antepassados na fé. Não é uma força ou objecto de conhecimento: Deus é uma pessoa que deseja relacionar-se como os homens: Deus é uma pessoa que deseja relacionar-se com os homens. É o Deus de Alguém.
É elucidativo o relacionamento de Deus com Abraão. Com este patriarca, arranca a história da Salvação. Ao longo da Sagrada Escritura, ele vai permanecer a referência normativa da atitude de fé.
Abraão viveu há cerca de quatro mil anos, no sul da Babilónia, numa região compreendida entre-os-rios Tigre e Eufrates, junto do Golfo Pérsico. A sua vida aparece profundamente marcada pela relação com Deus. Abraão vive orientado pela fé. Na sua história podemos destacar alguns aspectos significativos:
Chamamento – A história da Salvação começa com o chamamento de Abraão: «Deixa a tua terra, a tua família, e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te indicar» (Gen 12, 1). Abraão deixa tudo e põe-se a caminho. Confia em Deus e obedece. Coloca na Sua Palavra a segurança da própria vida.
A fé é um caminho que exige desprendimento. É deixar realidades em que apoiamos a nossa existência e orientar-se pela Palavra de Deus. Esta deve construir o grande apoio da existência do crente.

2.2 A promessa feita a Abraão
Promessa – Deus pede desprendimento em vista de bens maiores que promete a Abraão: «Nada temas, Abraão! Eu sou o teu escudo, a tua recompensa será muito grande. Abraão respondeu: Que me dareis Senhor Deus? Vou-me sem filhos e o herdeiro da minha casa é Eliezar (…) E conduzindo-o para fora disse-lhe: Ergue os olhos para os céus e conta as estrelas se fores capaz de contar. E acrescentou: Pois bem será assim a tua descendência. Abraão confiou no Senhor e o Senhor outorgou-lhe isso como mérito. O Senhor disse-lhe: Eu sou p Senhor que te mandou sair de Ur, na Caldeia para tomares posse desta terra» (Gen 15, 1-7).

Em que consiste a promessa?
- Descendência números:
Abraão é o pai dos crentes. Todas as religiões monoteístas o veneram como pai na fé (cristãos, judeus e muçulmanos). A descendência da fé não é menos importantes que a descendência natural, segundo a carne.
- Terra: Deus promete também uma outra terra a Abraão, para onde ele deve orientar o seu coração. Abraão torna-se peregrino. A sua verdadeira pátria não é aquela em que se instalara, mas a Terra Prometida.
- Bênção: Deus promete ainda uma amizade fiel e protecção: «Serei o Teu Deus». Esta protecção deve constituir a grande segurança da vida de Abraão.
O compromisso pessoal de Deus com Abraão mostra que Ele não é um Deus distante, ameaçador ou denominador. È um Deus que promete ajuda e protecção. Que se dispõe a acompanhar Abraão na peregrinação e a garantir o futuro dele e da sua descendência. É um Deus atento aos acontecimentos concretos, presente na história dos homens.
Abraão confia sempre e obedece totalmente. Apoia a sua existência na Palavra de Deus e caminha na Sua presença, na esperança firme que lhe vem da Promessa. Assim começa a história da salvação.

2.3. Deus Criador do céu e da terra
O Deus de Abraão não é uma divindade particular de uma família, tribo ou povo. É reconhecido pelo sacerdote Melquisedec, que abençoa Abrasão, como «Deus Altíssimo Criador do céu e da terra» (Gen 14, 18-20). O Deus que intervém na história de Abraão e o acompanha no seu caminho é o Criador e Senhor do Universo e o Deus de todos os povos. O seu poder e providência não tem limites nem fronteiras. Aquele que ajuda Abraão está atento a todos os povos.
A convicção de que o universo e os homens têm origem e sentido na criação de Deus, faz parte de fé de Israel e verifica-se desde o início da história do povo de Deus. Vem narrada a partir das primeiras páginas da Bíblia, é fruto da experiência de Israel que sentiu na sua história a protecção poderosa de Deus e é objecto da Revelação divina.
Não devemos, porém, entender a narração da criação como uma explicação científica da origem do universo. Não existe contradição entre a fé e a ciência, entre a afirmação bíblica da criação e teorias que procuram explicar a formação do universo, a sua idade ou a sua evolução. A Bíblia não pretende ser um trabalho científico. Utilizando imagens próprias da cultura de então e empregando uma linguagem poética, apenas afirma que o universo e os homens não surgiram por acaso ou por necessidade. Vêm da decisão livre de Deus, foram criados por amor. O mundo e a humanidade têm origem e sentido em Deus.
A criação não situa a acção de Deus apenas no começo do mundo. Deus não construiu o mundo à maneira de um arquitecto que, depois de concluída a obra, a deixa entregue a si mesma. Deus governa o mundo e orienta-o para o seu destino. A criação está orientada para a plenitude do Reino, progride para a perfeição até alcançar o novo céu e a nova terra.

2.4. Atitude do crente face ao criador
O homem, obra prima da criação, feito à imagem de Deus com liberdade e inteligência, encontra no mundo criado um reflexo da bondade e da grandeza de Deus, e ao mesmo tempo uma obra em que é chamado a colaborar. Para o crente, o universo mostra o rasto de Deus: «Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das Sua mãos» (S1 19, 2). Mas é também o espaço onde deve trabalhar, fazendo progredir a criação para a perfeição do Reino de Deus, não como dono absoluto, mas como colaborador de Deus em ajude de respeito e admiração pelas leis próprias das realidades criadas.
Acreditar na criação é assim descobrir a verdadeira condição do homem. Colocado acima de todas as realidades criadas, coroado de honra e de glória (S1 8,5-7) é, afinal, uma criatura limitada e dependente, marcado pela grandeza e pela fragilidade. Em Deus encontra segurança e harmonia. Aquele que criou o céu e a terra ama-o com amor infinito e ampara-o com amizade. N`Ele pode o homem confiar totalmente: «O nosso auxílio está no Nome do Senhor que fez o céu e a terra» (S! 124,8).

2.5 O pai de Nosso Senhor Jesus Cristo
O conhecimento e a relação com Deus avançam em profundidade ao longo da história da Salvação. Depois dos patriarcas, cabe aos profetas um papel importante na purificação do conceito de Deus e no reforço da Aliança. Mas, para nós cristãos, a referência principal para conhecer Deus e nos relacionarmos com Ele é a pessoa de Jesus Cristo. Deus é para nós «o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, Pai de misericórdia e Deus de toda a consolação» (2 Cor 1,3). Outras religiões crêem e seguem o Deus de Abraão, como os muçulmanos e os judeus. Apesar desta raiz comum, quantas diferenças entre nós e os muçulmanos ou os judeus! Nós cremos no Deus que Jesus Cristo nos deu a conhecer.
É, de facto, em Jesus Cristo que a união entre Deus e os homens atinge a sua plenitude e perfeição. Toda a vida e acção de Jesus se explicam pelo amor do Pai. Este é a presença constante em que se apoia e a quem, no derradeiro momento da Sua vida, se entrega.
O grande segredo da vida de Jesus, da profundidade admirável da Sua pregação, da intensidade da oração, da liberdade e serenidade com que enfrenta o Seu destino, é a intimidade com o Pai. Jesus manifesta claramente a consciência de uma relação única com Aquele a quem chama pelo nome terno de «Abbá» - Paizinho. Por isso O dá a conhecer em plenitude: «Ninguém jamais viu a Deus: o Filho único que está no seio do Pai é que o deu a conhecer» (Jo 1,18).
O Deus revelado em Jesus Cristo manifesta-se de modo mais admirável na ressurreição. É a obra mais impressionante de Deus, o coroamento de todas as intervenções ao longo da história da Salvação. Por isso, no Novo Testamento, Deus é apresentado como «o Deus que ressuscitou Jesus dos mortos». Aquele em quem se pode confiar mesmo quando todas as seguranças humanas falham. Deus é amor fiel que não nos abandona nas trevas da morte. A ressurreição é a manifestação decisiva e insuperável do amor de Deus «que dá a vida aos mortos e chama à existência o que não existe» (Rom 4,17). S. Paulo considera que, neste acontecimento, se realiza plenamente a promessa feita a Abraão (Rom 4, 13-17). A plenitude da promessa realiza-se, assim, na vida nova da Ressurreição que Jesus Cristo alcança para os crentes.

3. A FÉ DE ABRAÃO E A NOSSA FÉ
3.1 O encontro com Deus
No exemplo de Abraão verificamos que Deus se conhece pela relação, pelo encontro. Do mesmo modo, hoje, para conhecer Deus não basta falar d`Ele. É indispensável dialogar com Ele., escutar a Sua Palavra e falar-lhe. Como afirma um filósofo (Martin Buber): «Se fosse só um Deus de quem se fala não acreditaria. Mas é um Deus a quem se fala. Por isso acredito».
Para conhecer Deus não basta acumular demonstrações sobre a Sua existência. Não é através da especulação que chegamos a Ele, mas através do encontro. Deus é o amigo, o Pai, Aquele que ama em todas as circunstâncias e cuja presença nos envolve constantemente. Esta convicção explica o estado permanente de oração que podemos verificar nos personagens bíblicos.

3.2 Caminhar na fé
Como a fé de Abraão também a nossa deve desenvolver-se ao modo de um caminho que avança. Ter fé é seguir o apelo de Deus e fixar o coração na sua promessa.
Caminhar na fé só é passível através do esforça permanentemente, da procura sincera da verdade de Deus e do desapego das seguranças humanas a que nos agarramos.
O crescimento na fé deve ter em vista três dimensões:
Confiança – Abraão confiou mesmo quando humanamente não havia garantias. Também a nossa fé deve levar à confiança em Deus, amigo e protector
Conhecimento – Deus revela-se, vem ao nosso encontro e dirige-nos a Sua Palavra. Assim como falou através dos profetas e de Jesus, fala-nos ainda hoje através da Igreja, que interpreta e actualiza a mensagem bíblica. A fé tem um conteúdo que é necessário conhecer.
Prática – Acreditar é pôr em prática o que Deus indica, Abraão caminhou na presença de Deus. Toda a sua vida é uma resposta à revelação. Também nós devemos praticar a fé. A fé manifesta-se na prática.
M. Pelino - A. Marto

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Preocupa-me muito o problema do cristianismo convencional

ANSELMO BORGES: Pessoalmente, quais são as maiores preocupações do Padre Alfaro, como teólogo, actualmente?

JUAN ALFARO: Pergunta-me quais são as minhas principais preocupações no meu trabalho teólogo. É uma pergunta, da sua parte, muito simpática, mas à qual devo responder como uma autocrítica de modéstia.
Do que disse em resposta às perguntas precedentes, pôde já ver talvez quais são as minhas preocupações pessoais. Mas quereria indicar ainda como eu vivo a responsabilidade do meu trabalho na teologia.
Preocupa-me muito o problema do cristianismo convencional, isto é, o facto massivo de tantos cristãos cuja fé é demasiado condicionada pelas circunstâncias concretas histórico-sociais e cujo cristianismo, professado sem dúvida por muitos com sinceridade e boa fé, está demasiado longo do cristianismo autêntico. Isto faz-me não só pensar, mas também meditar e sofrer, pensando como voltar ao verdadeiro cristianismo, isto é, como viver hoje a mensagem de Cristo, como chegar, embora sabendo que na Igreja haverá sempre pecados, ao facto que na Igreja se espelhe verdadeiramente o rosto de Cristo. Neste sentido, considero que os escritos do católico francês Marcel Légaut devem ser tomados a sério como um desafio às falhas e fraquezas do nosso cristianismo, embora nestes escritos de Légaut haja imprecisões e lacunas.
Nesta linha, preocupa-me também muito facto enorme as massas operárias não vejam no cristianismo, na sua figura visível que é a Igreja, uma mensagem de justiça e de libertação. A presença da Igreja, precisamente entre os pobres e os marginalizados da sociedade, exactamente aqueles a quem Jesus dirigia a sua mensagem, é muito precária. Pode dizer-se, parece-me que sem exagero, que geralmente o clero e as congregações religiosas não têm uma sensibilidade suficiente para este enorme problema.
in Revista Igreja e Missão I 68 I Julho - Agosto I 1974 I 340-341.